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segunda-feira, 23 de abril de 2012

O MENINO NA FAMILIA PATRIARCAL

O menino crescia como se fosse desde os oito anos adulto ou homenzinho. Aos dez anos era uma caricatura de homem. Também neste particular os daguerrotipos da época trazem até nos figuras às vezes tristonhas de meninos amadurecidos em homens antes de tempo.

clip_image002A prematuridade de Dom Pedro II pode ser tomada como exemplo. Fez-se imperador aos quinze anos e logo tornou-se pensativo e grave. Aos vinte e tantos era já um velho com as barbas e o aspecto de um avô. A juventude fugira dele a galope. A educação brasileira favorecia num Brasil ortodoxamente patriarcal como foi o dos meados do século XIX, a prematuridade do menino.

Muito cedo era o menino de família patriarcal alastrada, rica ou simplesmente remediada, enviado para o colégio, onde ficava sob regime de internato. Embora sua casa ficasse ás vezes nas vizinhanças do colégio, só muito raramente – em geral, uma vez por mês - tinha permissão para visitar a família. Recebia sempre de casa caixas de bolos e de doces. Mas nunca brinquedos. Brinquedos eram para crianças. Ele tinha nove ou dez anos: já era homenzinho. Ou quase um homem.

Em geral, estudava o colegial dos meados do século XIX com afinco sua Gramática latina, sua Retórica, seus clássicos franceses, sua História Sagrada, sua Geografia. Quando o grande momento dos exames finais chegava, ele, de ordinário, brilhava, respondendo bem tudo que o padre fulano de tal perguntava sobre Horácio, Noé, Rebeca, regras de pontuação, o verbo amare. E tudo que algum outro professor perguntava sobre Racine, o Vesúvio e muito mais que se podia imaginar. Nessa ocasião, o filho de família mais letrada recebia do pai um presente: Os Lusíadas ou o Paraíso Perdido de Milton.

Ia à missa aos domingos, algumas vezes servindo de coroinha, de batina escarlate. Embora ainda quase criança, esse menino cedo tornado caricatura de homem, ostentava na rua chapéu preto de copa dura e usava bengala. Só antes de tornar-se, muito mais homem do que menino, sendo ainda menino, os pais lhe permitiam trajes menos severos que os quase-homens. Estiveram em voga, na época, entre as famílias brasileiras mais elegantes das cidades, trajos quase carnavalescos para os meninos de menos de nove anos. Trajos imitados dos de personagens de óperas: daquelas óperas mais em voga, naqueles dias, entre aristocratas do Império. Ou fossem – os anúncios de jornais do meado do século XIX nos permitem acompanhar essas imitações wildianas da arte pela vida – “jaqués de veludo à espanhola”, “Puritano”, “Trovador”, “Zuavo”, “Prusiano”, e para as meninas “Traviata”, “Lucrecia Borgia”, “Rainha Vitória”, “Imperatriz dos Franceses”.

Do menino brasileiro da década de 50 escreve o Rev. Fletcher: “...antes dos doze anos, parece um pequeno velho, com seu chapéu preto de copa dura, colarinho empertigado e bengala; na cidade, passeia como se todo o mundo estivesse olhando para ele e como se estivesse espartilhado. Não corre, não salta, não roda arco de barril, não joga pedras, como os meninos da Europa ou da América.” No Colégio, além dos “rudimentos ordinários de educação” , ele aprende –escreve o Ver. Fletcher – a “ter boa caligrafia”, que constituía então “habilidade universal entre os brasileiros” . Muitos dos meninos das classes mais altas eram também “bons músicos”...

‘O médico francês Dr. Rendu, que conheceu o Brasil imperial da primeira metade do século XIX, despeja sobre o menino brasileiro seu humor cáustico: “Aos sete anos”, escreve ele, “o jovem brasileiro já possui a austeridade de um adulto. Caminha com ar majestoso, de bengala à mão, orgulhoso da roupa que ostenta e que o faz assemelhar-se mais aos homens de nossas feiras que a um ser humano”.

Vejam-se as fotografias de meninos brasileiros dos meados do século XIX. São criaturas de olhos doces, de ar tristonho, de aparência seráfica, de cabelos amaciados pela muita brilhantina, de que então se abusava; crianças vestidas – quando já de mais de nove anos- como gente grande e esforçando-se para parecerem velhos, que surgem dos velhos álbuns brasileiros de família: os das primeiras fotografias. Ou de daguerrotipos: esses daguerrotipos que tiveram tanta voga entre os brasileiros mais elegantes, desde a década de 40; e que trazem ao brasileiro de hoje imagens tão vividas da aparência e dos trajos dos seus antepassados. Vários desses daguerrotipos são do europeu J. Evans que em 1843 já estava em atividade no Brasil: antes, portanto, de Augusto C. Stahl, que, na década de 50, retratou em daguerrotipos muito brasileiro de prol: inclusive o Imperador Dom Pedro II e a Imperatriz. Chamavam-se seus ateliers, nos anúncios de jornais da época, “oficinas” ou “galerias de daguerrotipos”.

Aos quinze ou dezesseis anos, o menino terminava os estudos no Colégio. Estava em tempo de ir para a escola superior. Para a Academia, como então se dizia: Academia de Direito, Academia de medicina. O estudante de uma dessas academias não era um estudante qualquer: era um Senhor Acadêmico.

Como nos esponsais das moças, a escolha da profissão ou de carreira do filho, que geralmente prevalecia, era a do pai ou a da família. A tendência era para espalhar os meninos em escolas diferentes, de modo que a família patriarcal pudesse ser representado nas diversas profissões então importantes. Um era escolhido para estudar Direito ou Política ou Diplomacia em Pernambuco ou em São Paulo; outro, para entrar numa das escolas de Medicina – a de Bahia ou a do Rio de Janeiro; um terceiro para ser cadete na Escola Militar; um quarto para ingressar no Seminário. Entre as famílias mais religiosas, não ter filho religioso ou padre constituía omissão ao mesmo tempo social e moral. Algumas vezes, o filho mais moço, mesmo sem nenhuma inclinação para a vida religiosa, era, nesse particular, uma espécie de bode expiatório. A família, de qualquer modo, tinha que ter um padre. Quanto ao filho rude de inteligência ou desajeitado nos modos, os pais mais prudentes encaminhavam-no para o comercio, que era olhado com deprecio pela gente afidalgada da época.

O jovem que fosse a flor da família, como inteligência, era escolhido, quase sempre, no Brasil dos meados do século XIX para a Academia de Direito – a Academia chamada de Direito servindo para a formação não só jurídica, de advogados e de magistrados, como política, preparando jovens para o Parlamento, para os ministérios, para a administração pública e para a diplomacia do Império.

Fonte: Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX, 1º ed. Recife, 1964, tradução do inglês de Serial Life in Brazil in the Middle of the 19th Century, Baltimore, 1922, de Valdemar Valente, revista e aumentada pelo autor: GILBERTO FREYRE). Imagens: Premium Image Collection “MasterClips”

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PUBLICADO EM 2004